domingo, 31 de julho de 2016

Revista Visão Entrevista Quaresma

Quaresma passa férias no Algarve, um dos locais visitados foi a praia da Falésia.  O craque português tem colocado várias fotografias nas redes sociais das diversões nocturnas e das idas à praia. Para a semana Quaresma vai se apresentar no Besiktas para começar a nova temporada.


Quaresma aproveitou o tempo livre para dar uma longa entrevista à revista Visão:

«Esta podia ser a tournée de uma popstar, mas é só o regresso a casa de um campeão europeu. Numa viagem de Lisboa a Gaia, Quaresma contou à VISÃO que não gostava de futebol em criança e que Ronaldo fortalecia os bíceps com baldes de água
'Hey, não pode parar aí!” O motorista do reboque já se preparava para dar um raspanete quando percebe que o condutor do Porsche, que tinha encostado à berma da autoestrada para cuidar de um filho indisposto, é um dos campeões. Aí o tom muda. Gargalhadas, palmadinhas nas costas, “parabéns, campeão”, “obrigado, campeão” e só mais uma selfie “comigo” e outra “com o meu colega”. Mais à frente, quando Quaresma e a família param na estação de serviço, um homem traz até à porta um amigo atrelado pelo braço: “Vês? Vês?” Ele que visse com os seus olhos. “Pode esperar um minuto para uma fotografia? Vamos ali chamar uma moça.” A moça chega, esbaforida. “Foi a corrida da minha vida”, desabafa.
Foi assim o caminho inteiro, do hotel D. Pedro, em Lisboa, até Vila Nova de Gaia. O extremo não é de falar muito, às vezes fica até envergonhado, mas nunca foge aos afetos. Quaresma já não é só o jogador que todos os portistas adoram. É um homem que tinha sido dado como morto para o futebol, renasceu na Turquia, renasceu na seleção, marcou o golo decisivo contra a Croácia, o último penálti contra a Polónia, ganhou à França em França e foi campeão europeu. Tudo isso dá direito a um país rendido e a uma boa dose de histeria.
"Ontem fui às Amoreiras, vou desde miúdo, as pessoas sentiam um carinho especial por mim, mas agora é demais. Fui a um restaurante para pedir comida e não consegui. As pessoas continuam a viver o sonho. Ontem já estavam a dizer: agora temos de ser campeões do mundo."
Dormiram na noite da final?
Foi direta. A nossa vontade era sair do jogo e vir logo para Portugal. Mas mesmo assim quando chegámos vimos aquilo tudo… Foi dos dias mais felizes que tive no futebol. Em França, vi pessoas com 60, 70 anos, a festejar ao lado dos novos, pessoas a cair e a levantar-se, parece que nem sentiam dor. Mas onde comecei a sentir que fomos campeões foi quando o avião aterrou. Depois ia no autocarro, olhava para as pessoas e começava a rir-me e a falar sozinho.


© Reuters Staff / Reuters
O que disseste ao Éder depois do golo?
Nada, não consegui. Uma coisa que nos levou ao sucesso foi a união que a gente construiu dentro da seleção. Mesmo os que não jogavam estavam prontos a ajudar. Não é fácil estares um mês dentro de um hotel, ainda mais quando não jogas… e o selecionador conseguiu controlar toda a gente, pondo quase todos a jogar. Além de ser um grande treinador, e de entender muito sobre futebol, o Fernando Santos mexe muito bem com o psicológico. Porque mesmo que não jogues vai falando contigo, é sincero. Eu entrava, fazia golos, e não era um titular indiscutível, mas sabia que era um homem da sua confiança.
Que vos disse ele antes daquele jogo decisivo?
Que íamos ser campeões. E depois as críticas ainda te começam a unir mais.
O Éder sempre foi dos mais criticados. Merecia aquele golo?
Mais do que ninguém merecia. É bom jogador, e muito boa pessoa. Fiquei feliz por ganhar e por ser ele a marcar. Porque de cada vez que a gente ia a algum lado era assobiado, às vezes faltavam-lhe um pouco ao respeito.
Percebeste o que se passava com o Moutinho no momento dos penáltis?
Só pela TV. Quando ouvi o Cristiano a dizer ‘marco o primeiro’ disse logo ‘sou eu o último’ e já nem ouvi mais nada.
Estavas tão confiante como parecias?
Passou-me pela cabeça: isto vai cair para mim, alguém vai falhar e eu vou resolver. Fui do meio campo até à marca de penálti sem ouvir ninguém, só pedia a Deus que me ajudasse, porque tinha o país nas minhas mãos. Não ouvi adeptos, não ouvi colegas. Quando olhei para o guarda-redes pensei: a bola já está lá dentro.
E o golo contra a Croácia?
É impossível explicar. Olhas lá para cima, sabes que tens 120 minutos, marcas aos 117 e dizes: ‘Deus está connosco’.
O que sentiste no momento em que o Ronaldo caiu na final? Houve vontade de vingança sobre o Payet?
O alvo a abater é sempre o Cris, mas não acredito que tenha sido de propósito. Numa final estás sempre à espera do Cristiano, ele é a nossa bandeira. Os defesas têm mais medo. É aquele jogador a quem não podes dar um centímetro. Não é que não se possa ganhar sem ele, mas a seleção não é a mesma sem ele. Não é por admirá-lo como pessoa e como jogador, para mim ele é o melhor do mundo, nunca vi um jogador com tanta força. Dentro de campo está sempre a falar, a puxar pelos colegas. A imagem do ‘eu sou o maior, só penso em mim’ não tem nada a ver. O Ronaldo que conhecemos é aquele que viram a pular e a sofrer.
O que é que ele vos disse ao intervalo?
Para levantarmos a cabeça e termos confiança, que íamos ganhar.
Brincaste com ele quando atirou o microfone ao lago?
[risos] Não me comecei a rir logo porque aquilo já estava quente. Começo a rir-me mais à frente. E mandámos piadinhas, claro. Foi divertido.


© Reuters Staff / Reuters
Porque agarraste o pescoço do jogador francês?
[Risos] Foi instinto… Não que tivesse vontade de lhe fazer mal, não tinha, não sei explicar o que me passou pela cabeça.
Quando a Islândia marcou o golo que vos colocou no ‘lado bom’ ficaram felizes?
Feliz não ficas, o objetivo era passar em primeiro. Fomos para a cabina chateados, ninguém falava, parecia um enterro. 
O Fernando Santos fechou a porta e deu-nos a maior descompostura de sempre. Não entendia porque não estávamos a festejar.
Já choraste por causa do futebol?
Já. Nos momentos em que fiquei de fora, em que me lesionei. A única vez em que chorei num bom momento foi quando acabou o jogo e ganhámos o Europeu.
A meio da viagem Quaresma descobre que alguém tatuou uma torre Eiffel em miniatura com esta frase ao lado: “Já vi, já está, o povo quer, o Quaresma dá.” Acha graça e ri-se. Conta que durante o Europeu foi sabendo de miúdos que queriam tatuar lágrimas e cruzes no rosto iguais às suas. Achou demasiado louco, e desincentivou.
Na escola da Bandeira, em Vila Nova de Gaia, há quem espere desde as 7h. Quando o presidente da Câmara, Eduardo Rodrigues, anuncia que o jogador irá apadrinhar uma bolsa para incentivar a formação de atletas, uma plateia de crianças canta até à rouquidão “olé Quaresma, Quaresma olé”, pelo meio de versos sobre as suas fintas e trivelas. No final, algumas aproveitam o seu tamanho para se atrelarem. Entre as que ficam para trás, algumas choram, como se nunca mais fossem poder vê-lo. No pátio e junto à Câmara há quem lhe peça que volte ao FC Porto, quem grite “és lindo”, quem berre que é “um orgulho”, quem diga que é “um pedaço”, quem arrebite uma mama a pedir um autógrafo, quem agite um cartaz dizendo “faz-me lelitos” e quem entre à força no carro, furando as barreiras de segurança. Mesmo assim, quando um amigo sugere levar o carro para um local mais discreto, onde poderia apanhá-lo, despistando os resistentes, Quaresma recusa: “São assim tantos? Qual é o problema? Saio e vou andando.” Mais uns abraços e está a salvo. Na estrada, em andamento, ainda é perseguido por adolescentes: abre o vidro e sorri-lhes.
"A primeira memória que tenho do Cristiano é daquela gadelha, o cabelo todo encaracolado. Era um miúdo tímido, que pouco falava. Ele chega ao Sporting com 11, eu fui quando ia fazer 7. Ele estava no centro de treinos, que era dentro do estádio. Eu voltava sempre para casa, na Charneca da Caparica. Tinha de apanhar metro, barco, autocarro. Nas camadas jovens, nunca jogou na minha equipa. Mas lembro-me que era muito magrinho e muitos tinham a mania de dizer 'nunca vais dar jogador, não tens força e não aguentas'. Ele ia para a casa de banho, enchia os baldes de água e punha-se a treinar bíceps para ficar forte. Sabia tudo sobre os atletas da natação, sobre o corpo deles. Dizia ‘um dia vou calar muita gente’, e calou mesmo. Às vezes íamos jantar, ou à Feira Popular. Quando ele apareceu nos seniores do Sporting eu já tinha carta e carro, ele vinha comigo. 
É uma pessoa que sempre admirei, não por ser quem é hoje em dia, porque passa-me ao lado o que ganha e o que tem. 
O que me interessa é que seja sincero comigo e nunca mude comigo."
És amigo do Jorge Jesus?
Já o conheço há muito tempo, desde o Estrela da Amadora. No futebol toda a gente se conhece. Sempre senti que gostava de mim como jogador, assim como eu tinha admiração por ele enquanto treinador. Quando acabava os jogos ficávamos a falar e trocávamos umas ideias. É o melhor treinador português.
As tuas idas à seleção foram muito intermitentes. Foi injusto não te convocarem?
Um jogador que acaba de ser o melhor da Liga Portuguesa e não é convocado para um Mundial, como é que achas que se vai sentir? Também no último Mundial, com o Paulo Bento, senti uma injustiça muito grande, porque tinha acabado de fazer uma grande época no Porto.
Dizia-se que reagias mal ao banco.
Esse foi o argumento… sempre me meteram famas. Sou uma pessoa direta? Sou. Digo aquilo que penso? Verdade. Agora faltar ao respeito a alguém não falto. Essas fantasias que se fizeram à minha volta, do bad boy que só causa problemas na cabina… Se não aceitasse ir ao banco não estava na seleção. Com o Fernando Santos fui um jogador utilizado, mas sempre fui ao banco e sempre reagi bem. Posso ficar triste, é normal, amo muito o futebol, levo o futebol a sério, quero jogar sempre. Agora daí a causar problemas… foi essa a imagem que construíram de mim, e que ninguém vai apagar até ao dia em que entrarem comigo no balneário.
Onde te imaginas a terminar a carreira?
Ainda não estou a pensar nisso. Para mim é mentira a história de que chegas à casa dos 30 e estás acabado. Sinto que estou um jogador melhor, diferente e mais completo.
Falaste há pouco da Charneca da Caparica, mas não foi lá que nasceste.
Nasci em Algés, fui para Sacavém, depois os meus pais separaram-se e fui para Campo de Ourique. Lá comecei a ir para o Casal Ventoso, onde tinha os meus amigos e onde fiz a minha adolescência quase toda. Depois fui para a Charneca, com a minha mãe. Quando vou para a equipa principal do Sporting vou viver para as Galinheiras, durante um ano. Depois comprei a minha primeira casa, um apartamento no Cacém, que ainda tenho e que nunca vou vender. Tinha 18 anos. 
E comprei o meu primeiro carro, um Audi TT. Lavava-o todos os dias, andava louco com aquilo, infelizmente tive um acidente e parti-o todo, senão ainda hoje o tinha.
A escola ficou para trás?
Ficou, mas a minha madrinha de batizado vai começar a mandar-me exames. O futebol vai acabar, quero aprender.
Só o Cristiano é que te pode chamar “puto Lelito”?
Ele já me chama isso desde miúdo, mas desde que seja com carinho e com admiração não levo a mal. Há pessoas que me veem na rua e me chamam cigano, ou ciganinho, eu começo a rir-me.
Em miúdo sentias discriminação?
As pessoas nunca me trataram mal, mas sentia que olhavam para mim de maneira diferente. Se acontecesse alguma coisa, será que foi ele? Os ciganos têm fama de roubar, de enganar… Houve vezes em que isso aconteceu, na escola. Desaparecerem umas coisas e dizerem que fui eu.
Tinhas amigos fora da comunidade?
Sempre me dei com todos. Se gostar de ti vou contigo ao fim do mundo. A etnia nunca me interessou. Como podia se tenho uma mãe angolana e um pai cigano?
Como é que entras no mundo do futebol?
Através do meu irmão. A verdade é que odiava futebol. Gostava era de karaté. 
E de hóquei. Comecei a jogar futebol porque íamos lá para um campo em Campo de Ourique, e na altura o meu irmão estava na baliza, e eu a fazer remates, e o meu irmão perguntou ao treinador se eu podia começar a treinar. Eu fui, era muito bruto. Era mais forte, tinha essa vantagem, chocava muito com eles, não passava a bola a ninguém, fazia muitos golos. A minha história é um bocado confusa, porque até eu fico muitas vezes a pensar: como é que eu não gostava de futebol se nasci para isto?
Em que momento é que te decidiste?
A partir dos sub-16, quando fomos campeões da Europa em Israel e fiz os dois golos da final. Quando chego a Portugal, era juvenil ainda, o Sporting mete-me na equipa B, com jogadores muito mais velhos que eu, e faz-me um contrato profissional de mil e poucos euros.
Se não fosse o teu irmão se calhar não teríamos aqui um futebolista.
Não teríamos não. O que seria? Quando cresces num bairro não sabes o que te pode acontecer. Podia ser traficante. Podia estar preso. Podia estar morto.»

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